Há décadas, a Praça Siqueira Campos é um dos principais pontos de encontro da cidade do Crato. Desde seus primórdios, o quadro da praça possuiu atrativos diversos, como bares, cafés, sorveterias e até cinema. Do rico ao pobre, era na Siqueira Campos que as pessoas se reuniam para conversar, paquerar e confraternizar. Certamente, uma das figuras marcantes entre os frequentadores do lugar, durante as décadas de 1940 e 1950, era um sujeito alto, de olhos claros, boa conversa, e terno de linho branco, que lhe era característico. Seu nome era Antônio José Gesteira, mais conhecido como Dr. Gesteira.
Nascido em 09 de agosto de 1908, em Recife, capital do Pernambuco, Dr. Gesteira era filho de Aline Alcoforado Gesteira e Antonio Antunes Gesteira. Antoninho, como era chamado, desde a infância deu provas de inteligência e sociabilidade. No Gymnasio Pernambucano, terminou a primeira fase de seus estudos, seguindo em meados de 1925 para o Rio de Janeiro, onde deu início à sua formação, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Não foi possível confirmar os motivos de sua escolha pela medicina, mas é provável que a perda de sua irmã, vitimada pela enterite, aos 6 meses idade, no recuado ano de 1914, possa ter exercido grande influência em seu destino profissional.
Sua biografia é registrada principalmente pela crônica histórica e pela oralidade, carecendo, portanto, de maiores atenções quanto a novas fontes e verificações, algo que foi parcialmente executado durante os estudos para confecção deste artigo. Um dos principais trabalhos biográficos acerca do Dr. Gesteira foi publicado em 1988, na edição de nº32 da Itaytera, publicação do Instituto Cultural do Cariri (baixe as edições clicando aqui ). O responsável pelo artigo, Antonio Luiz Barbosa Filho, amigo próximo do Dr. Gesteira, indica que o médico se formou em 1934; entretanto, as colunas acadêmicas do Correio da Manhã, em suas edições de 1931, indicam que naquele ano, o jovem já estaria no 6º ano de seu bacharelado, portanto, no último período do curso.
Em 1932, o Diário de Notícias, outro periódico de grande circulação no Rio de Janeiro, tinha em seus anúncios um reclame do médico, destacando seus serviços como assistente de maternidade e médico de senhoras. Ao discar 2-8133, o interessado poderia agendar uma consulta com Dr. Gesteira, que atendia na Rua São José – nº 84 (3º andar), às segundas, quartas e sextas, das 16h às 18h. Presume-se, portanto, que 1934 seria o ano da conclusão de uma de suas especializações em cirurgia geral, uma vez que encontrei indícios de que, em 1933, ele continuava clinicando naquela cidade.
No Rio, Dr. Gesteira residiu nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas, vide os registros do Tribunal Superior de Justiça, que mostram que o filho de D. Aline, em março de 1934, tinha recentemente recebido seu título de eleitor, com a inscrição nº 4.132, sendo votante na 8º zona.
O médico foi embora da capital federal em 1935, seguindo para Teresina – PI, onde fez parte do serviço de combate à febre amarela, e casou-se com Maria Carmelita Fortes Vasconcelos, em 08 de junho de 1935. Em 1937, ele, que era poliglota e também um grande orador, foi nomeado professor no Colégio Militar do Ceará, mesmo ano em que veio ao mundo sua primeira filha, Célia Maria, no dia 11 de maio de 1937. Residindo em Fortaleza, teria clinicado também nas Casas de Saúde César Calls e São Lucas, até 1940, quando mudou-se para o Crato. Em 23 de março de 1940, nasceu em Fortaleza, Tereza Cristina Vasconcelos Gesteira, sua segunda filha.
No Crato, Dr. Gesteira modificou completamente o cenário médico. Atuando no Hospital São Francisco, trouxe ao Cariri, técnicas em cirurgia geral ainda inéditas, reduzindo consideravelmente a incidência de óbitos naquela cidade. Aliado ao profissionalismo, o espírito humanista do médico deu a ele enorme prestígio. Na supracitada Praça Siqueira Campos, Dr. Gesteira ignorava as divisões sociais dos grupos que ali se reuniam, e circulava por todos eles, fazendo amigos aos montes. Em seus atendimentos clínicos, nunca considerou deixar de atender alguém por motivos financeiros. Em alguns casos, chegava a fazer doações de remédios e afins, tamanha a miséria do paciente, o que lhe rendeu um quadro financeiro bastante delicado.
No campo político, o médico tinha uma posição curiosa, pois pertencia a uma ala mais à esquerda da UDN, partido reconhecido por seus quadros conservadores. Extremamente contrário a Getúlio Vargas, costumava discursar contra o político gaúcho, o que em tempos de Estado Novo lhe rendeu algumas prisões, sendo até mesmo recambiado para Fortaleza, apesar de ser 2º tenente da reserva de segunda classe médica, posto que lhe foi dado em 1943. Nessa ocasião, ao retornar da capital, o pernambucano foi recebido por uma enorme multidão, que ovacionava sua chegada.
Bastante progressista, Dr. Gesteira foi grande apoiador dos movimentos teatrais da cidade, e militou ativamente contra as hordas fascistas que se organizavam aos montes pelo Cariri, seguindo o chamado, principalmente, de Plínio Salgado, líder do movimento integralista. Sobre essa característica política do médico, um colunista da Revista Brasileira, em uma de suas edições de 1943, escreveu o seguinte:
“Antonio José Gesteira, cirurgião que, quando não funciona o bisturi, estripa livros e comenta autores, foi o porta-voz do Congresso no combate ao totalitarismo embrutecedor e ao integralismo mistificador”.
Em 1950, o médico concorreu pela UDN a uma vaga na câmara municipal do Crato, ficando como suplente ao cargo. Neste mesmo ano, deixou os quadros do Hospital São Francisco, fundando a Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, em sociedade com Dalmir Peixoto e Valdemar Pena, que ficava situada no cruzamento da Rua Santos Dumont com Rua Cel. Luiz Teixeira. A localização era bastante conhecida da população, pois ali havia garantia de atendimento médico, independente do porte financeiro do paciente, o que em alguns momentos o levou a choques com o restante dos profissionais da saúde do município. Choques, também, ele teve com a imprensa da capital, quando saiu em defesa do Ten. Afonso Laurindo de Queiroz, que fora assassinado no Crato. A morte do militar reverberou na capital, e gerou comentários depreciativos em relação à cidade do Crato e ao morto, o que indignou o médico, que mesmo tendo sido preso político, partiu em busca de justiça, e publicou no Ecos da Semana, periódico de grande circulação local, uma enorme descompostura aos jornalistas da Rádio Iracema, de Fortaleza.
Dr. Gesteira era também um conhecido transgressor das normas sociais do período. Quando não existia divórcio legal, separou-se. Era também, infelizmente, alcoólatra, vício que lhe rendeu a perda de recursos financeiros e sua saúde, e para além disso, casos anedóticos na oralidade popular. Luís Gonzaga Bezerra Martins era proprietário da Sorveteria Glória, uma das mais afamadas daquela cidade, localizada no térreo do edifício Filgueira Teles, que também abrigou o Grande Hotel e a Lanchonete Cinelândia. Sobre o Dr. Gesteira e seus companheiros, registrou em seu livro virtual diversas passagens curiosas.
Em uma delas, ele cita que após um acidente com um caminhão de implementos agrícolas, o médico foi chamado para socorrer um dos passageiros, que havia sofrido um duro golpe de enxada, estando entre a vida e a morte. Dr. Gesteira não titubeou e, após uma delicada operação, concluiu o serviço, salvando o paciente. Dizem até que, ao beber, o médico apurava ainda mais suas capacidades cirúrgicas. Ainda em relação às memórias de Luiz Garcia, ressalto que Dr. Gesteira foi residente do Grande Hotel, habitando um apartamento no térreo, vizinho à sorveteria.
Boêmio incorrigível, Dr. Gesteira encantou-se em 27 de dezembro de 1958, na Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, numa tarde de um sábado tristonho. Relatam, os amigos, que o seu padecimento foi grande, tendo em vista a agressividade da cirrose hepática que o acometia, apesar do renomado corpo clínico que se revezava cuidando do paciente, composto por nomes de prestígio, como Dr. Elysio Figueiredo, Possidônio Bem, Leão Sampaio e outros. Maior ainda foi o clamor popular após o seu falecimento. Relatos dão conta de que o comércio da cidade fechou completamente, e boa parte do povo vestiu o luto.
Seu velório aconteceu em sua última residência, que ficava localizada na Praça da Sé, e reuniu uma multidão, responsável por levá-lo até o Cemitério de Nossa Senhora da Piedade, sua morada final.
O Crato, que não estava passando por uma fase muito boa em relação às chuvas, viu uma garoa fina cair naquela manhã. No campo santo, mais uma vez a pobreza do médico foi evidenciada, pois não havia lá um túmulo à sua espera, tendo sido sepultado em cova comum. Entretanto, poucos minutos antes de o caixão baixar à sepultura, uma cena comovente tirou ainda mais lágrimas dos que acompanhavam o sepultamento. Dona Aline Gesteira, aos 73 anos, havia deixado sua residência em Recife, situada na Av. Rosa e Silva – nº 377, para vir prestar as últimas homenagens ao filho morto. Poucos anos depois, em 10 de outubro de 1964, houve o reencontro, estando a mãe sepultada no Cemitério de Santo Amaro, na capital pernambucana.
Dr. Gesteira poderia ter se unido à multidão de outros médicos, que clinicaram nas cidades da região e tiveram o anonimato histórico como destino após a morte; mas não foi o que ocorreu com ele. O pernambucano é prova de que a religiosidade popular é irrepreensível, e segue seu caminho de modo inabalável, independente das muitas tentativas que fazem de lhe tolher suas ramas celestiais. Não há romanização que a arrefeça, principalmente no Vale do Cariri, lar de tantos santos e beatos populares. Para além do catolicismo popular, o médico também é muito importante aos espiritas da região.
Graças aos esforços dos seus amigos de outrora, Dr. Gesteira ganhou um túmulo, que é anualmente visitado por milhares de pessoas, agradecidas por milagres alcançados e que lhe são atribuídos. As principais narrativas em torno do Dr. Gesteira estão justamente em sua atuação como médico, mesmo depois de desencarnado.
Um dos casos mais famosos dá conta de que uma gestante entrou em trabalho de parto durante a madrugada, na maternidade do Hospital São Francisco, antigo local de trabalho do médico. Naquela ocasião, por infelicidade, não havia nenhum obstetra de plantão, e a equipe de técnicos e enfermeiros não conseguiu contato com nenhum profissional que pudesse atender no local.
Desesperadas, as enfermeiras, talvez querendo evitar as cenas de dor da paciente, deixaram-na sozinha. Ao retornarem, já acompanhadas por um médico, que também já tinha como certa a morte da mãe e da criança, as enfermeiras se depararam com ambos em bom estado de saúde, e já higienizados. Espantados, perguntaram o que houve, e a mulher narrou que um médico havia chegado na sala e feito o procedimento cirúrgico. Desconfiados, os membros da equipe médica solicitaram as características do homem, e ao mostrar a fotografia do Dr. Gesteira, receberam a confirmação da paciente, o que causou espanto em todos, já que o mesmo havia falecido há alguns anos.
Histórias assim se somam ao longo das décadas e fazem referência às mais diversas enfermidades. Quem se opõe à santidade do médico geralmente leva em conta seu perfil boêmio, quando em vida. Já os seus devotos elevam suas qualidades, principalmente seu desapego material e dedicação aos mais pobres, a quem nunca negou remédio, muito menos atenção médica.
João José Reis, em seu artigo denominado “O cotidiano da morte no Brasil oitocentista”, fala sobre a preocupação do povo com a “boa morte”. Carpideiras para chorar e rezar nos velórios, doações generosas às paroquias e ordens religiosas, sepultamentos nas campas das igrejas, dentre outros ritos públicos e privados, faziam parte de uma das pautas mais importantes das vidas de muitas pessoas, que talvez tão ocupadas com a boa morte, esqueciam do bem viver. Aí estaria o ponto consensual na trajetória do Dr. Gesteira, ocupou-se ele mais em viver bem e fazer o bem, servindo ao seu chamado humano e profissional.
Em memória de Antônio José Gesteira, escrevo este texto, desejoso de que sua biografia inspire não somente à classe médica atual, mas a todos nós. Agradeço também a José Flávio Vieira, amigo que estimo bastante, e que me é também fonte de inspiração, tendo auxiliado consideravelmente nesta pesquisa. Deixo também minha gratidão a Hérlon Fernandes, responsável por dar grande suporte na elaboração deste pequeno estudo.
SOBRE O AUTOR: Roberto Júnior é acadêmico de História (URCA); biógrafo da atriz Marquise Branca; ex-secretário geral do Instituto Cultural do Cariri; ex-membro do Conselho de Cultura do Crato; diretor administrativo do Clube do Automóvel do Cariri – Siqueira Campos, e membro do Núcleo de Pesquisas em Ensino de História e Cidadania – NUPHISC/CNPq.
REFERÊNCIAS
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BARBOSA FILHO, Antonio Luiz. 30 anos sem Dr. Gesteira. Itaytera, Crato, n. 32, 1988.
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