Os cemitérios são fontes inesgotáveis de pesquisa histórica. A localização dos túmulos, a arquitetura deles e a ornamentação são depoentes de aspectos sociais e culturais de uma determinada região. Infelizmente, o estudo da arte tumular e das necrópoles do Cariri são ainda muito tímidos, algo que pretendemos mudar em breve, a iniciar pelos estudos dos campos santos que foram soterrados. As cidades são feitas de camadas de tempo, sob nossos pés podem estar fragmentos importantes de nossa história, e nem sempre conseguimos saber onde estamos pisando.

1 – O CEMITÉRIO DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO

O Cemitério de Nossa Senhora do Rosário em 1925, localizado no canto esquerdo da fotografia. FONTE: Documentário de Alexandre Wulfes

Erguido nos primórdios de Joaseiro, quando ela ainda era um pequeno arruamento dentro da Tabuleiro Grande, propriedade rural do Pe. Pedro Ribeiro, o cemitério de Nossa Senhora do Rosário foi o primeiro do lugar. Seu nome deve-se a capela inserida dentro de seus limites, que era consagrada a santa de forte devoção dos escravos da fazenda e arredores. O campo santo ficava localizado atrás da igreja matriz de Nossa Senhora das Dores, e esteve ativo até 1910, quando os sepultamentos comuns foram transferidos para o cemitério da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Muito embora o Padre Cícero tenha transformado a primitiva capela da fazenda em uma igreja de maiores dimensões, no cemitério não houve tal investimento. Antes reduzida a Rua do Brejo, Rua da Matriz, Rua Grande e Rua São Pedro, a vila cresceu, e com a abertura de novas ruas e o retalhamento do Quadro de São José – uma grande porção de terra hoje compreendida pelo recorte feito da Praça Padre Cícero até a capela do Socorro, em formato de “L”, que pertencia ao Ten. José Dias Guimarães – o cemitério de Nossa Senhora do Rosário passou a ser margeado pela Rua Nova (atual Av. Dr. Floro Bartholomeu).
Interessado em saber os motivos de sua demolição, grande surpresa eu tive ao encontrar a documentação que responsabiliza D. Amália Xavier de Oliveira pela derrubada da capela e do cemitério onde estavam sepultados os fundadores da vila e seus primeiros habitantes. Em 16 de dezembro de 1950, Dona Amália remeteu à Diocese de Crato, carta endereçada a Dom Francisco de Assis Pires, bispo diocesano do período, solicitando autorização para pôr abaixo o cemitério e sua capelinha, e erguer no terreno uma capela em honra da mesma santa, que seria utilizada pelas alunas do Ginásio Santa Terezinha, cujas responsáveis também teriam a tutela sobre o templo. Em 10 de janeiro de 1951, Dom Francisco emite a autorização para construção do novo templo. Em seu argumento, Dona Amália expõe que o terreno do cemitério, desativado há 40 anos, estava sendo usado como curral, e que todos os túmulos e ossos já haviam sido removidos.
Entretanto, em entrevista concedida a mim, Renato Dantas, importante memorialista e pesquisador da história da cidade, e que a época era residente da Av. Dr. Floro, afirma que durante a construção do novo templo, presenciou a reunião de inúmeras ossadas, que foram acondicionadas em um caixote de madeira e enterradas no fundo da torre que estava sendo construída.
Por fim, ao contrário do que havia se comprometido, Dona Amália honrou a nova capela a Nossa Senhora de Fátima. A imagem da virgem peregrina visitou a região do Cariri em 1953, mesmo ano da inauguração do templo. Após a finalização das atividades do Ginásio Santa Terezinha, a gestão da capela erguida sobre o cemitério passou para o vigário da matriz de Nossa Senhora das Dores, o Mons. Murilo de Sá Barreto, que também optou pela demolição, aproveitando o generoso lote para construir imóveis de aluguel.
Entre a Rua Padre Cícero e a Rua São Pedro, na Av. Dr. Floro, mais precisamente em frente a Rua Isabel da Luz, conhecida como “Beco da Matriz”, esteve o cemitério de Nossa Senhora do Rosário, há décadas esquecido, e talvez nem os residentes sobre seu lote saibam de sua existência.

Localização aproximada, vide o recorte em linhas vermelhas.

2 – O CEMITÉRIO DE SÃO MIGUEL

A capela de São Miguel em 1946, durante o cortejo do Beato José Lourenço.
FONTE: Acervo de Renato Casimiro e Daniel Walker

O Cariri vivenciou muitas epidemias, uma das mais devastadoras foi a da cólera, ocorrida na segunda metade do XIX, doença responsável pela morte de milhares de pessoas no Ceará, dentre elas, o pai do Padre Cícero. No início do XX, a varíola e a gripe espanhola varreram a região, tendo a varíola iniciado sua devastação logo nos primeiros anos do novo século. Muito vigente na época, a teoria miasmática ditava que os corpos dos que morriam de doenças dessa natureza deveriam ser sepultados em cemitérios específicos, uma vez que se acreditava que os gases pestilentos ficavam retidos na cova, que não poderia ser outra vez aberta. Tal prática levou ao falseamento de informações nos registros de óbitos das paróquias e cartórios, principalmente, quando se tratava de pessoas de maior expressão financeira e social.
Jogados em carroças ou nos ombros dos coveiros mais desacreditados da doença, estes, geralmente, trabalhavam embriagados para suportar o elevado número de sepultamentos, os corpos eram levados para longe da cidade. Doença viral de fácil propagação, a varíola, em sua variante mais forte, levava a óbito cerca de 30% dos infectados, os bexigosos, como eram chamados os doentes, nome dado tendo em conta o surgimento de bolhas de pus entre o pico e a convalescença da doença.
Na antiga Joaseiro, o local escolhido foi um terreno inabitado, onde hoje se encontra o Hospital São Lucas, e que pertencia ao Padre Cícero. No mesmo terreno, o Beato Manoel Cego ergueu a primeira capela de São Miguel, em 1912, da qual se tornou zelador, assim como também do cemitério que ficava nos fundos dela. Em 1950, por meio do Dep. Leão Sampaio e de uma campanha que envolveu centenas de pessoas da cidade, foi concretizado o projeto de construção de um hospital moderno e amplo, e o local escolhido foi justamente o cemitério dos bexigosos.

O Beato Manoel Cego
FONTE: Acervo de Renato Casimiro e Daniel Walker.

A capela de São Miguel foi demolida e reconstruída em localidade vizinha, onde até os dias atuais está. O cemitério foi derrubado e o hospital construído, sendo atualmente uma das principais maternidades da cidade. Na localidade, não existe qualquer marco em memória dos que ali foram sepultados.Esse mesmo destino teve vários outros campos santos da região que foram usados em epidemias, que serão abordados em outro artigo. No levantamento que fiz, encontrei referência sobre um cemitério aos acometidos por peste bubônica, localizado nas imediações do Triângulo, populoso bairro da cidade, mas não consegui dados complementares que pudessem reforçar a pesquisa. Ainda sobre o cemitério de São Miguel, Sinhôrzinho Ribeiro cita, em suas memórias, que naquelas imediações, passava a trincheira da Guerra de 1914, existindo, portanto, a possibilidade de combates e óbitos no local.

Localização aproximada, vide as linhas vermelhas.
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Roberto Junior
Acadêmico de História na Universidade Regional do Cariri (URCA), foi secretário geral do Instituto Cultural do Cariri (ICC) e conselheiro de cultura do Crato. Fundou o Cariri das Antigas em 2014, e desenvolve pesquisas na área de História Política e Social. Atuou como bolsista da FUNCAP no projeto "Biopoder, Saúde e Saber médico: O Hospital Manuel de Abreu e as práticas de cura e controle da tuberculose na Região do Cariri nos anos de 1970”, coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Egberto Melo. É diretor administrativo do Clube do Automóvel do Cariri - Siqueira Campos, sendo o historiador responsável pela edição do periódico do clube, fruto de suas pesquisas acerca da história do automóvel no Brasil, com recorte entre as décadas de 1890 e 1990. Tem como pesquisa de trabalho de conclusão de curso, a História e Desenvolvimento da Aviação no Cariri, com enfoque principal na atuação do Correio Aéreo Militar.