Ruínas em Senador Pompeu - FONTE: EBC

AS BASES

As secas são dos fenômenos naturais que mais castigam o nosso país, mas o que há de natural por trás de suas consequências é muito pouco. No Ceará, a crônica histórica registrou períodos de seca de modo cíclico, mas foram as secas de 1877, 1915 e 1932 que mais lembranças trazem.

A castigante seca de 1877 fez com que milhares de homens, mulheres e crianças vagassem pelos sertões cearenses em busca de ajuda, tendo a capital do estado como principal destino. Os resultados desta invasão de retirantes na capital foram dos mais severos, e vale ressaltar que as linhas férreas, que nas secas seguintes seriam importante meio de deslocamento dos flagelados, ainda estavam em estágio inicial de desenvolvimento, o que reduziu consideravelmente o número dos que chegaram até o destino final, e muitos padeceram no trajeto, não sendo incomum os relatos de mortos pelas estradas e caminhos.

A posição do estado diante de tão grave situação sempre foi das mais controversas; as políticas de assistência eram poucas e ineficientes, e os preceitos morais eram sempre usados como justificativa para o uso destes infelizes como mão de obra escrava; em Barbalha e Crato temos grandes exemplos destes casos, vide as Casas de Câmara e Cadeia destas cidades, construídas a partir de 1877, e no atual sitio Fundão, um enorme muro de pedra que seria usado como barragem no Rio Batateira. As já citadas ferrovias viram grandes avanços de infraestrutura graças a esta sofrida mão de obra; simplesmente assistir de viveres estas pessoas era considerado algo inaceitável, pois assim, acreditava-se estar incentivando a vadiagem e a corrupção do caráter, mas era visto com bons olhos, porém, o suprimento de fazeres.

A ascensão da classe médica, antes vista pela “nobreza da terra” com maus olhos, fez com que as ações de disciplina do corpo e da mente se tornassem política de estado; uma das teorias que ganhou força a partir da metade do Séc. XIX foi a teoria miasmática, que pregava que os ares carregavam pestilências das mais variadas sortes; tornava-se importante, portanto, higienizar as cidades e costumes dos que nela habitavam. É importante destacar também que são vários os fatores que levaram aos processos de intervenção urbana e social no Brasil, país que se espelhou amplamente na França do Barão Hausmann, não sendo este citado acima, fator único neste caso.

Foi a partir desta  mentalidade  nascente que as “grandes mentes” do Ceará tomaram partido no combate à seca, mas principalmente aos flagelados, que invadiam cidades e as contaminavam com suas pestilências e sua miséria, ferindo assim o novo pacto social da burguesia cearense, e neste contexto, diante da Grande Seca de 1915, eternizada nas páginas do romance de Rachel de Queiroz, o presidente do Ceará – cargo hoje correspondente ao do governador – Coronel Benjamin Liberato Barroso ordena a criação do primeiro campo de concentração, o do Alagadiço, que segundo Barroso, facilitaria a organização dos retirantes e a distribuição de socorro; outro discurso também era bastante difundido e defendido: Fortaleza, a capital em pleno processo de modernização, não teria de contar com o triste espetáculo da miséria em suas praças, avenidas e prédios públicos.

O farmacêutico Rodolfo Teophilo, ao ver aquela multidão de gente aglomerada, advertiu as autoridades de que em questão meses o campo de concentração se transformaria num campo santo, pois, diante das condições de higiene e das naturais facilidades de contagio, as mortes seriam rotineiras. Ele estava certo, e ao fim daquele ano os corpos se amontoavam aguardando transporte, sendo o governo obrigado a dissolver o que até aquele momento era uma experiência. Mas as tentativas de pôr uma cortina escondendo o teatro da fome e da miséria não seriam encerradas tão facilmente, vide as palavras de Benjamin Barroso, que relativizou os acontecimentos ali ocorridos:

“Ainda parece ouvirmos em tumulto o queixume de um povo bom a debater-se nas agonias de miséria que não vão bem longe. Sofreu com coragem inimitável os horrores da seca sem cometer desatinos. Morreu de fome sem roubar nem saquear”.

Aos campos de concentração, a população se submeteu diante da escassez de alternativas e da desgraça iminente, mas também esse sofrido povo soube dar a devida nomenclatura ao novo método do estado: Curral do Governo.  Em 1919, outra seca assolou o estado, e mais um “abarracamento” é montado, e aos clamores de povo, a única voz em resposta foi a da repressão policial.

A GRANDE SECA DE 1932

Até 1932, os donos do capital e da máquina pública tiveram tempo suficiente para dar continuidade ao processo de modernização da capital, e também das práticas de controle social. Diante da iminente seca, o interventor Carneiro de Mendonça ordena a criação do Departamento das Secas, para somar aos outros órgãos já existentes, como o IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas), que representava a participação do governo federal.

A revista O Careta tratou de modo bastante critico o posicionamento do governo federal diante da seca – Fonte: Biblioteca Nacional.

Monta-se naquele momento as estratégias para lidar com as massas famintas que desesperadas buscariam ajuda, e as diretrizes são a montagem de frentes de trabalho urgentes, com o intuito de aproveitar a mão de obra dos que saúde ainda possuíam, e a instalação de novos campos de concentração, desta vez mais planejados, principalmente no que se refere a localização, que agora focará no afastamento de Fortaleza e das aglomerações urbanas, estando preferencialmente as margens das ferrovias, principal meio de locomoção dos flagelados, e próximo as zonas que seriam beneficiadas por obras que fossem utilizar a mão de obra dessas pessoas.

Foram criados 7 campos de concentração, em Fortaleza foram 2: o campo do Otávio Bonfim e o do Urubu, à beira mar, no trecho entre o Parambu e o Porto; neste primeiro, o jornal O Povo registra a presença de 2 mil pessoas em Abril de 1932. Em Quixeramobim – um campo de curta duração – estiveram alojadas 5 mil pessoas. O campo do Ipú abrigou cerca de 7 mil almas, entre julho de 1932 e março de 1933; em Senador Pompeu, o Campo do Patú foi construído aproveitando as estruturas da vila operária deixada pelos ingleses após abandonarem a obra do açude de mesmo nome; lá quase 20 mil pessoas estiveram confinadas.

OS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NO CARIRI

O maior campo de concentração do Ceará, em questão de números, foi o do Burity, em Crato, onde mais de 60 mil pessoas estiveram abrigadas. Hoje o local se chama Muriti, e nas proximidades da pequena e antigas estação de trem, poucas marcas restaram dos horrores ali vividos; as estruturas eram provisórias, em sua maioria barracões, e apesar do pouco número de revoltas, o campo do Crato possuía uma estrutura similar a uma cadeia. Em Cariús foi também enorme o ajuntamento de pessoas, chegando a mais de 30 mil. No total, os campos reuniram mais de 100 mil pessoas em todo o estado, e vale ressaltar que esses dados são, em boa porcentagem, de fontes oficiais, e que podem não corresponder aos números reais.

Antônio de Alencar Araripe, renomado político cratense, era a época prefeito do Crato, e em depoimento para o documentário “O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto”, de Rosemberg Cariry, diz que eram necessários esforços diários no “Curral do Burity” afim de dar conta do sepultamento em valas, dos que ali faleciam. Os números dos campos no Cariri se justificam pela posição estratégica da região, e atrativos como a liderança do Padre Cicero e do Beato José Lourenço – tendo este último acolhido cerca de 500 pessoas no Caldeirão – e também a disponibilidade de recursos naturais do lugar.

O planejamento e execução dos planos de controle social nos campos foi intenso. De policiais a padres e agentes de vacinação, tudo lá era controlado dentro das possibilidades, mas ainda assim a incidência de doenças causadas pela aglomeração e maus tratos destes milhares de pessoas foi inevitável e o registro de óbitos são incertos, mas os números são assustadores. Atualmente não se tem precisão perfeita do imenso local que abrigou o campo do Crato, pois muito se fez pelo esquecimento deste passado, restando a nível estadual, basicamente Senador Pompeu, que ainda preserva alguns casarões em estado de ruína.

Estas pessoas morreram sem dignidade e o devido amparo, e mais de 80 anos depois, este continua sendo um passado que se recusa a ser passado, e que sempre mostra que as práticas de controle e exclusão foram se modernizando e mudando de nome. No caso dos campos cearenses, que tiveram seu fim definitivo na década de 1940, e tomaram a forma de frentes de trabalho e campos de trabalho “aberto; não fazia mais sentido a antiga nomenclatura, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, que trouxe à tona os horrores da Alemanha nazista e seus campos de concentração e genocídio dos judeus, que jogou uma sombra pesada sobre o termo. Eles lá tiveram um abominável extermínio, nós aqui infelizmente também tivemos.

Imagens da movimentação e reclusão dos flagelados. FONTE: EBC e Diário do Nordeste.

FONTES:

  • SOUSA RIOS, Kênia. Campos de concentração no Ceará: isolamento e poder na seca de 1932. [S. l.]: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001.
  • NEVES, Frederico de Castro ―Curral dos Bárbaros: os campos de concentração no
    Ceará (1915 e 1932). Revista Brasileira de História. Contexto, v.15, nº29, p. 93 –
    122,1995.  

COMO CITAR:

JÚNIOR, Roberto. Os Campos de Concentração no Ceará. Juazeiro do Norte, 1 jun. 2019. Disponível em: https://cariridasantigas.com.br/os-campos-de-concentracao-no-ceara/. Acesso em: 1 jun. 2019.

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Roberto Junior
Acadêmico de História na Universidade Regional do Cariri (URCA), foi secretário geral do Instituto Cultural do Cariri (ICC) e conselheiro de cultura do Crato. Fundou o Cariri das Antigas em 2014, e desenvolve pesquisas na área de História Política e Social. Atuou como bolsista da FUNCAP no projeto "Biopoder, Saúde e Saber médico: O Hospital Manuel de Abreu e as práticas de cura e controle da tuberculose na Região do Cariri nos anos de 1970”, coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Egberto Melo. É diretor administrativo do Clube do Automóvel do Cariri - Siqueira Campos, sendo o historiador responsável pela edição do periódico do clube, fruto de suas pesquisas acerca da história do automóvel no Brasil, com recorte entre as décadas de 1890 e 1990. Tem como pesquisa de trabalho de conclusão de curso, a História e Desenvolvimento da Aviação no Cariri, com enfoque principal na atuação do Correio Aéreo Militar.