ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM MAIO DE 2018 – TEXTO INALTERADO
INTRODUÇÃO
[…] há que se reverenciar e defender especialmente as capelinhas toscas, as velhices de um tempo de luta e os restos de luxo esburacado que o acaso se esqueceu de destruir.
Mário de Andrade
Iniciamos este trabalho tendo como inspiração o amplo número de casas de fazenda, engenhos e estruturas anexas a estas, remanescentes no Cariri Cearense, seus respectivos estados de conservação, muitas vezes ruim, e com as interrogações sobre os motivos de tal panorama, uma vez que existe militância organizada e projetos concluídos ou em andamento, de tombamento e preservação dos patrimônios materiais e imateriais da região.
Iniciadas as visitações em março de 2017, foi possível constatar, por exemplo, a existência de imóveis de relevância arquitetônica evidente, mas que não estavam inventariados, e o conhecimento de sua existência restringia-se, em muitos casos, a um recorte geográfico bastante pequeno, em mais de um caso, somente a cidade ou distrito no qual estava situado.
Outro dado preocupante constatado foi a inexistência de material sistematizado acerca do histórico da edificação, algumas com aproximadamente dois séculos de existência, o que nos indica uma fragilidade bastante notável nas fontes orais, estabelecendo-se assim um desafio a nós e aos futuros pesquisadores que trabalharão com a mesma temática.
Diante do exposto, decidimos iniciar o processo de inventário, levantamento histórico e problematização do contexto atual de preservação e manutenção destes patrimônios, que julgamos de extrema importância para compreensão dos elementos formadores de nossa sociedade.
I – A IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO RURAL
O Brasil é um país que tem fortes raízes rurais, seu processo de industrialização é considerado tardio, e até a década de 1950 nossas bases econômicas estavam situadas principalmente no campo, uma realidade hoje distante em algumas regiões, mas que representou uma quase unanimidade em nossa sociedade desde o período colonial.
O século XIX foi marcado por avanços tecnológicos que causaram mudanças estruturais em escala mundial, o surgimento de novos meios de comunicação e transporte, assim como alterações nas relações sociais, dentre elas posso citar as comerciais e de mão de obra, como o aumento das relações comerciais exteriores e a abolição da escravatura, respectivamente, impactaram bastante nosso país, e levaram os absolutos senhores de terras a deixar seus potentados rurais e seguir o caminho de seus filhos, que buscavam os grandes centros em buscar de diplomação, e em alguns casos, novas vivências; tal processo de ruptura foi longo, mas em certos aspectos definitivo, e sensível à todos, uma vez que não se tratava somente de um processo de realocação espacial.
Era no campo que os grandes nomes do Brasil Colônia e Império se estabeleciam, em suas propriedades focavam seus maiores investimentos, ao ponto de Sérgio Buarque de Holanda, destacar em seu clássico fundador, Raízes do Brasil, o importante papel do meio rural na nossa formação social:
“Toda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios urbanos. É preciso considerar esse fato para se compreender exatamente as condições que, por via direta ou indireta, nos governaram até muito depois de proclamada nossa independência politica e cujos reflexos não se apagaram ainda hoje”
E reforça:
“É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação europeia: as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas. Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se modificou essencialmente até a abolição”.
Porém, é importante ressaltar que tal processo não resultou no fim dos latifúndios e suas decorrências prejudiciais, principalmente as classe mais pobres, e sim no distanciamento do que podemos chamar de núcleo gestor dessas propriedades, para as cidades.
Como legado arquitetônico desse período de focalização financeira no recorte geográfico rural, temos desde as técnicas de construção, às especificidades estéticas destes sem número de imóveis, digo inumeráveis, pois os critérios para inventaria-los ainda são deveras deficientes, principalmente no tocante das construções menos abastadas, que apesar de não possuírem a arquitetura apurada de alguns casarões de fazenda, são notáveis testemunhos da vida, em seus mais diversos aspectos, levada pelo homem simples do campo. Retratam a primitiva arquitetura vernacular[1], avançadíssima do ponto de vista de viabilidade técnica no recorte temporal em que estava inserida; no nordeste, exalta os desdobramentos do sertanejo para vencer as intempérie climáticas, as altas temperaturas do sertão levaram o homem a estudar, em suas possibilidades, meios para facilitar a circulação de ar, retenção de umidade e iluminação natural, tais medidas refletiram, obviamente, no resultante arquitetônico, que teria, no caso das casas grandes, teto bastante alto para que o ar mais quente, e consequentemente menos denso, subisse e deixasse os ares mais fresco em altura térrea; mas não devemos considerar a configuração de construção de duas águas como sendo resultante somente das questões climáticas, até porque temos exemplares de construções assim em outros estados do país, e fora do próprio Brasil, com tal arranjo, é necessário, portanto, levar em contas as possibilidades de engenharia disponíveis à época, assim como também a viabilidade de determinadas matérias primas; este último fator também nos ajuda a entender os longos períodos de construção destes imóveis, que não raramente passavam a ser habitados antes do término da construção, que em seus arremates poderia contar com elementos importados da Europa, ou dos grandes centros urbanos do país; tais distâncias nos levam a refletir sobre a precariedade dos meios de transporte no Brasil Colônia, que contava com reduzido número de estradas capazes de oferecer condições de tráfego para os comboios que traziam esses materiais, atrasando assim a finalização da obra.
Continuando na problemática sobre os elementos compositores da arquitetura das casas de fazenda, casarões, casas grandes, ou como queiram chamar os imóveis de maior apuro de engenharia e arquitetura, tratarei sobre a espessura das paredes, que facilmente ultrapassavam hum metro de largura, e tais medidas não se justificam apenas pelo quesito estrutural, mas também pelo controle de temperatura, uma vez que compostas por tijolos de adobe e tendo seu reboco em barro e cal, mesmo material muitas vezes utilizado como elemento de ligação entre os tijolos, conseguia reter umidade suficiente para reduzir a velocidade da troca de temperatura entre o ambiente externo e o interno, isso ficou evidente em nossas visitas, onde conseguimos perceber as diferenças de temperatura, não somente nos espaços mais utilizados no imóvel, mas nos sótãos, por exemplo, é evidente as maiores temperaturas, tendo em vista a proximidade do teto e a impossibilidade da troca dos ares por umidade, e isto nos aponta a preferência daquele espaço para a conservação de gêneros alimentícios e outros objetos; sendo detentor de ar mais seco, o sótão atrasava o desenvolvimento de certos elementos biológicos decompositores de matéria orgânica. Outro caso interessante é o número de portas e janelas, responsáveis pela ventilação e iluminação, mas que também estavam inseridas em fatores culturais, como as demonstrações de poder econômico, estas variáveis tratarei com mais densidade adiante.
Acima tratei de alguns elementos que considero importantes para compreensão da arquitetura rural no nordeste, é importante ressaltar que tais exemplos não abrangem todo o país, pois como foi tratado acima, as variantes ambientais e culturais tem fundamental importância no processo formador de identidade arquitetônica de um lugar; isto é facilmente percebido quando comparamos nossas construções com as do sul e sudeste, em especial o Vale do Café.
Ainda no recorte especificado, voltarei minha atenção para as casas de taipa, que configuram ainda hoje como principal meio de habitação do sertanejo, e que apesar das politicas públicas para construção de imóveis em alvenaria, ainda são facilmente encontradas. Para mim, são elas as maiores depoentes do processo de adaptação do homem ao seu meio, e expoentes da arquitetura vernacular nordestina, os seus construtores, não podendo contar com mestres e artesãos das capitais e zonas de grandes movimentações financeira e cultural, estudavam o ambiente e seus fatores compositores e agiam de acordo com o que dispunham. Tive a oportunidade de visitar algumas dezenas desses imóveis no Ceará, Pernambuco e Bahia, e percebi a grande variação na disposição dos cômodos, portas, janelas, alpendres, e curiosamente, o fogão a lenha. Traçar o perfil exato da casa de taipa nordestina é para mim algo muito complexo e volátil, as construções, feitas em sua maioria em mutirão, são retratos fieis da composição familiar e das particularidades dos moradores, e configuravam como verdadeiros acontecimentos sociais da comunidade, registradas inclusive na crônica e cancioneiro popular. Porém, tratar a casa de taipa como unanimidade regional é também um erro, no processo de inventário feito por mim, cataloguei algumas unidades construídas em pedra, barro e cal; pude constatar a grande disponibilidade destes materiais na localidade, o que corrobora com minha colocação de que a arquitetura vernacular foi, antes de qualquer influência exterior, responsável por viabilizar a sobrevivência dos ocupantes destas terras no período colonial, e continuidade de seus descendentes nos períodos seguintes.
Dedicarei este trecho especificamente a localização do fogão a lenha e a formação de vilas. O fogão, apesar de expelir quantidade considerável de fumaça e fuligem, não raramente está localizado dentro do imóvel; questionados os moradores, muitos atribuíram a questões culturais, ligadas as tradições familiares, mas a construção dessas tradições me deixou deveras curioso, e em minhas pesquisas pude constatar fatores interessantíssimos, dentre eles a retenção de calor do fogão, muito apreciada durante a noite, quando a temperatura externa baixava e ele se tornava o grande irradiador de calor para o interior da residência, tornando o clima interno mais agradável. Pernoitando nestes imóveis durante o inverno, muitas vezes presenciei membros da família armarem suas redes próximas ao fogão ou em cômodos vizinhos a cozinha, principalmente em imóveis bastante antigos, erigidos por pessoas com conceitos de privacidade que diferem dos nossos. O despertador no sertão não se limitaria somente ao canto do galo, mas também pode ser considerado o fogão a lenha como um dos responsáveis por despertar os moradores mais sonolentos; com as brasas quase apagadas pela manhã, o primeiro a despertar, ou então o responsável pelas primeiras atividades na cozinha durante a manhã, não conseguiria evitar as grandes quantidades de fumaça que eram expelidas pelas cavidades do fogão, abrir a porta da cozinha amenizava, mas era atitude tardia, ocorria somente após as nuvens provenientes da combustão do carvão terem percorrido boa parte do imóvel, era mais prático e eficiente que ir acorda filhos, netos, e agregados, não há sono que resista.
Também achei por bem discorrer sobre a formação de vilas; estudando o processo de ocupação portuguesa, e também de povos de outras nacionalidades, foi possível constatar a segurança como um dos fatores primordiais; os ajuntamentos de casas aumentavam a resistência daquele núcleo habitacional aos ataques de nativos e inimigos, e no caso das casas de taipa, a existência dos imóveis construídos “colados” tinha por objetivo aumentar à resistência estrutural das construções as intempéries climáticas, pois o barro utilizado na construção destas sucumbia paulatinamente as chuvas, quanto mais providencias fossem tomadas para reduzir estes efeitos, melhor seria, e daí também podemos entender melhor a existência de alpendres nas extremidades dos imóveis, ou então a continuidade do telhado logo após a parede.
O papel do alpendre também extrapola os limites da conveniência dos moradores, e se estende ao fato de que durante o período colonial brasileiro, e estes resquícios se verificam até hoje, dar pouso aos comboieiros, bandeirantes ou simples excursionistas era algo cultural, e nas residências mais abastadas existiam quartos apropriados para tal finalidade, com portas abertas somente para a parte externa da construção, e nenhuma possibilidade de interação com o interior das mesmas, preservando em alguma medida a privacidade dos moradores. Em residências mais modestas, o alpendre servia de arrimo para os viajantes, quando da não existência do mesmo, restavam os cômodos internos, geralmente a cozinha.[2]
Diante do exposto, podemos verificar a relevância do patrimônio arquitetônico rural de modo mais ampo, obviamente esta discussão rende um debate mais denso e alongado, mas por hora o objetivo é defender a tese de que estas casinhas rústicas ou estes restos de luxo esburacado que o acaso esqueceu-se de destruir são importantíssimas fontes de pesquisa e símbolos de representatividade do povo brasileiro, e que apesar de existirem politicas públicas de preservação patrimonial há mais de 80 anos em nosso país, e que muitos imóveis rurais já tenham sido beneficiados com tombamentos e restauros, é perceptível que as atenções ao patrimônio citadino são deveras intensas, principalmente por parte da opinião pública, que convivendo diariamente com as edificações em situação de risco ou até mesmo as preservadas, tendem a desenvolver sentimento de pertencimento, e em alguns casos, organizar militância de situação junto a causa. A lógica no âmbito rural tende a ser diferente, os olhares não o alcançam com tanta intensidade, e apesar de o índice de demolições ser bem menor que nos limites urbanos (para os proprietários é economicamente mais interessante construir a nova residência em outro local, já que as terras são vastas, e abandonar o imóvel antigo, ou subutilizar os mesmos, sendo muito comum verificar a transformação para armazéns ou similares) o abandono faz ruir lentamente as edificações, em alguns casos a recuperação do imóvel é praticamente impossível.
Trato com olhar especial esta causa, e creio ser o momento necessário para trabalharmos a conscientização e politicas públicas de preservação específicas ao patrimônio rural; adentrar aos limites campestres é reencontrar as raízes de nossa sociedade, e consequentemente de nossa ancestralidade.
ADICIONAL: O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO RURAL NO CARIRI CEARENSE
A ocupação do Cariri Cearense pelos europeus se deu, segundo algumas fontes, no final do século XVII, tendo sido intensificada no século XVIII. Manuel Rodrigues Ariosa teria sido o primeiro sesmeiro da região, segundo os processos levantados até hoje, mas a sua própria solicitação de sesmaria nos dá indícios de que a ocupação já ocorria em frequência considerável durante o século XVII, como podemos conferir nas observações da solicitação:
“O suplicante Manuel Rodrigues Ariosa, alegou que havia comprado uma data com duas leguas de comprimento e uma legua de largura para cada banda do rio Jaguaribe, de Manuel da Cunha (não consta na Plataforma SILB), em 1696, o qual havia obtido as terras com outros companheiros por doação do governador Roque da Costa Barreto, no ano de 1681. * O suplicante alegou que as terras haviam sido povoadas conforme o termo da lei por Manuel da Cunha, e que a prova do povoamento foi apresentada por Manuel da Cunha na capitania do Rio Grande (do Norte), perante o desembargador Cristovao Soares Reimao, no intuito de solicitar por nova data de sesmaria, uma legua excedente das terras que possuira e povoara. * O suplicante alegou que havia tomado conhecimento de boatos que algumas pessoas queriam levantar demanda na capitania do Ceara com o pretexto de dizerem que a terra do suplicante nao havia sido povoada no termo da lei. * Afim de evitar contendas e mais gastos, o suplicante solicitou novo titulo de sesmarias para as suas terras no rio Jaguaribe, as quais possuiam a dimensao de tres leguas de comprimento com uma legua de largura, nao excedendo assim o limite delimitado pela Coroa”.[3]
É presumível que o estabelecimento dessas pessoas no Cariri tenha se valido especialmente da arquitetura vernacular, uma vez que registros como as Cartas Corográficas de Pedro Théberge[4] e seus respectivos relatos de viagem, façam referência a uma casa forte na ribeira do Rio Salgado, edificada em pedra, e que em 1861 já se encontrava em ruínas. Construção semelhante é possível encontrar ainda nos dias atuais no Sitio Emboscada, próximo a cachoeira de Missão Velha, um dos trechos com citações mais antigas na crônica cearense, e que tem por depoente sua própria denominação, que faz referência a Guerra de 1724, episódio sangrento envolvendo, José Mendes Machado, primeiro ouvidor-geral desta capitania[5].
Retomar pontos dessa longa discussão é algo que pode se tornar cansativo ao leitor, mas quanto ao saber local, é interessante observar nos imóveis do Cariri a localização estratégica, que dava aos moradores ampla condição de defesa e observação, algo importante numa região marcada pelo banditismo como a nossa, e também a própria disposição de cômodos internos, como na casa grande do Sitio Tatu, em Lavras da Mangabeira.
[3] Disponível em: http://www.silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/CE%200262
[4] Disponível em: https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/123456789/27310
[5] Disponível em: http://estoriasehistoria-heitor.blogspot.com.br/2016/01/o-primeiro-juiz-do-ceara-jose-mendes.html
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