Muito distante de Licaon, na Grécia, e do Versipélio romano, no Cariri tivemos o nosso próprio licantropo. Lobisomem é um termo próprio da península ibérica, e chegou ao Brasil nas caravelas dos ocupantes portugueses. Terra cheia de mistérios e encantos, o Cariri também teve o seu, e sua história percorreu toda a região, sendo seu nome deveras afamado.

Vicente Araújo, morado do Sítio Cabeceiras, era o dito lupino que assombrava nosso vale, e sua saga começou ainda na infância. Vicente não era o primeiro homem após sete mulheres, nem tinham pacto com o demônio, mas recebeu a maldição de sua mãe, contra quem ele cometeu imperdoável pecado. Reza a lenda que certo dia, enquanto ainda era molecote, Vicente recebeu a marmita do pai, para que a fosse deixar na roça.

A carne era um item escasso na mesa dos mais pobres, e naquele dia, a família de Vicente tinha dado a sorte de sobrar uns cruzeiros suficientes para comprar carne. Insatisfeito com a pouca porção do raro item que havia consumido, o jovem parou debaixo de uma árvore e comeu a cota de carne do pai. Chegando na roça, entregou a marmita e viu a decepção no rosto do destinatário, que não tinha encontrado a cobiçada proteína em seu prato.

Irritado, o pai de Vicente o indagou sobre a carne, e receoso da surra, o rapaz mentiu, dizendo ao pai que um homem desconhecido havia passado pela casa da família, e almoçado com sua mãe, que deu a carne reservada ao marido para o visitante. Tamanha mordomia, imaginou o marido, só poderia ser fruto de um caso amoroso, e largando a marmita, o homem marchou para casa. Naqueles idos, ainda imperava a danosa lógica de lavar a honra com sangue, e assim o sujeito fez.

Chegando na tapera, com Vicente em seus encalços, e após breve discussão com a esposa, o homem desferiu vários golpes de faca na mulher, que em suas agonias de morte, vingou-se da traição do filho, o condenado a vagar em noites de lua cheia, percorrendo as sete freguesias, sete encruzilhadas e sete campos santos.

Vicente “Finim” mostrando sua pose de lobisomem.

Ainda hoje, nos conselhos dos mais velhos, praga de mãe é item da mais alta eficácia, e foi o que ocorreu com o rapaz. Tão logo a mãe foi sepultada, Vicente “Finim, como ficou conhecido, passou a se transformar em lobo, e seus uivos e danações começaram e ser notados em Barbalha e adjacências, percorrendo na boca do povo até as serras de Brejo Santo, Jardim e Porteiras.

Vicente dizia que a espalhou a história para não ser incomodado nas madrugadas, haja vista ser um boêmio incorrigível, mas são inúmeros os relatos dos que o conheceram, e percebiam o comportamento estranho em certos períodos do mês. Açoitando os cachorros, abatendo rezes, Vicente foi diversas vezes avistado, e ainda perseguido pelos cabras de coronéis que queriam o couro do encantado sendo varado pelas balas do rifle papo amarelo.

Rápido e esquivo como uma raposa, Vicente foi se livrando das perseguições, e sendo temido cada dia mais. Em uma das situações, um dos conhecidos de Lobisomem, diante do calor do mês de setembro, armou sua rede no alpendre da casa de taipa, e com a família foi pernoitar no sereno. No meio da madrugada foram acordados com os gritos de um dos cachorros, que atacado, foi rapidamente arrastados para as capoeiras, em uma velocidade impressionante, tornando-se um eco em questão de segundos.

No dia seguinte, ainda cansado pela noite mal dormida, o sujeito estava a tomar o café da manhã, quando recebeu em sua casa a visita do amaldiçoado, ainda muito debilitado da noite de transformação. Ofereceu assento a Vicente, que tomou lugar e iniciou sua palestra:

Cumpade, por tudo que é mais sagrado, em noite de lua não durma mais com sua família no alpendre, essa noite fui obrigado sangrar seu cachorro pra não bulir em vocês

Causos como esse somam-se as dezenas. Pessoas que afirmam ter trabalhado com Vicente, e relatavam suas agonias horas antes da dita lua chegar, assim como também seu aspecto sofrido no dia seguinte, assim como também o de pessoas que levaram carreiras dele a noite, voltando de renovações ou de outras festividades, quando o mesmo uivava avisando de sua presença, pois parece-me que o peludo tinha predileção por sangue de animais, e não de gente.

Verdade ou não, as transformações lupinas de Vicente Finim rendem até hoje muitos comentários, e durante muitos anos atemorizaram muitos moradores de Barbalha, assim como os de outras cidades vizinhas, e mostram as dimensões que o sobrenatural, em sintonia com a religiosidade popular, podia alcançar naquele contexto

Durante minhas pesquisas sobre a história do lobisomem de Barbalha, narrativa que escuto desde a infância, principalmente por ter parte de minhas raízes no Sitio Farias, Macaúba e Boa Esperança, freguesias percorridas pelo homem-lobo, um dos elementos mais importantes para mim foi a força do assombro na memória dos mais velhos, que vivenciaram as noites de portas trancadas e cachorros acuados nos terreiros. Outro fato curioso tem relação com a transformação da narrativa, hoje quase que representada como uma fábula para dar exemplos de obediência e fidelidade aos pais, e não mais como uma história de terror.

Tal mudança talvez tenha sido possível após 1985, ano em que Vicente Araújo adormeceu em sono eterno. A notícia foi veiculada na difusora da cidade e muitos podem ter respirado aliviados, mas é como diz o ditado: “Seguro morreu de velho”. É melhor não arriscar, se você ouvir uivos, as capoeiras se balançando e os cachorros acuados, em noite de lua cheia, aperte o rabicho da alpecarta e pise fundo, pode haver um sucesso de Vicente entre nós.

P.S.: Agradeço a Débora Santos, fundadora da fanpage: Barbalha Terra de Santo Antonio (Facebook), pelas fotografias e informações complementares. Sou grato também a Luciano Landim, pela arte que ilustra a capa desse artigo, a Socorro Cavalachy, que revisou o texto, e principalmente a D. Maria Antonia Gonçalves da Silva, ou Vó Maria, como a chamo desde minhas primeiras palavras, que foi uma das primeiras pessoas, junto a minha mãe, que me contaram esse causo.

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Roberto Junior
Acadêmico de História na Universidade Regional do Cariri (URCA), foi secretário geral do Instituto Cultural do Cariri (ICC) e conselheiro de cultura do Crato. Fundou o Cariri das Antigas em 2014, e desenvolve pesquisas na área de História Política e Social. Atuou como bolsista da FUNCAP no projeto "Biopoder, Saúde e Saber médico: O Hospital Manuel de Abreu e as práticas de cura e controle da tuberculose na Região do Cariri nos anos de 1970”, coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Egberto Melo. É diretor administrativo do Clube do Automóvel do Cariri - Siqueira Campos, sendo o historiador responsável pela edição do periódico do clube, fruto de suas pesquisas acerca da história do automóvel no Brasil, com recorte entre as décadas de 1890 e 1990. Tem como pesquisa de trabalho de conclusão de curso, a História e Desenvolvimento da Aviação no Cariri, com enfoque principal na atuação do Correio Aéreo Militar.