Os vaqueiros talvez sejam das figuras mais relevantes do processo de ocupação dos sertões de dentro, e em tão longo percurso em nossa história, dezenas de contos e causos sobre eles se avolumaram na oralidade popular, sendo a história do Vaqueiro Assombrado de Exú, umas das que me tiraram o sono durante a infância.

Há uns bons 10 anos, durante uma noite de lua majestosa iluminando o terreiro, estávamos eu e alguns parentes meus, dentre os quais o meu tio, Antônio Firmino, um típico sertanejo contador de causos. Catávamos andu para o almoço do dia seguinte, quando ele emendou a proza para contar uma história das mais escabrosas que pude ouvir, e que mesmo passados tantos anos, não pude esquecer.

Contou-me Firmino, que na virada do século XVIII para o XIX, um exuense comemorava sua ascensão financeira com a posse de duas fazendas de gado, sendo uma delas localizada onde hoje temos o município de Moreilândia, e que de sua fazenda de morada, localizada no Exu, contavam exatas 6 léguas de distância, que percorridas a lombo de burro somavam uma relevante quantidade de tempo. Certa feita o dono da fazenda, um homem rígido em seu trato junto aos empregados e agregados, resolveu fazer uma visita surpresa a sua fazenda, que tinha por zelador um vaqueiro cujo nome perdeu-se nas quebradas do sertão, mas que se existisse registro, assim como o do proprietário, seria preservado. Lá chegando, passou primeiro pela vacaria, onde não encontrou sinal do seu empregado, e tomado pela fúria, tratou de percorrer os outros imóveis do local, sendo que na tapera de morada do vaqueiro, o patrão encontrou o empregado morto já há algumas horas, caído próximo ao alpendre.

Havia falecido o pobre coitado, aparentemente de causas naturais, sem ao menos ter tomado os últimos sacramentos da vida cristã que tanto prezou. Sacramentos esses que o patrão também não buscou encaminhar ao morto, por conta do adiantado horário, já era “Boca da Noite”, como se diz por essas “varedas” sem fim. A única providência do fazendeiro foi colocar o corpo sobre uma esteira de palha e acender as velas nas posições que os mais velhos há anos o ensinaram. Sem mais ações a tomar, o sujeito sentou-se a alguns metros do falecido, e tragando seu cigarro brabo observou a lua com interesse, até que um barulho no interior do imóvel atraiu sua atenção. O bravo exuense olhou com certo desinteresse para dentro da tapera, pois não era homem de crença em visagens e aparições do além, mas o cenário era tão aterrador que o duro coração do sertanejo perdeu o compasso.

O vaqueiro, que um dia tomou de conta de sua propriedade e engoliu seus desaforos, estava outra vez de pé, e seus olhos traziam ares demoníacos, e sua língua clamores de justiça aos malfeitos que sofreu do patrão enquanto ser deste mundo. A criatura de horrível feição iniciou sua caminhada de redenção ao seu antigo algoz, garantindo ao tremulo valentão do sertão, que ao inferno iriam de um jeito ou de outro. O fazendeiro, sem os devidos comandos das pernas e da bexiga, recuperou o pouco de forças que lhe restava e correu pelo oitão da casa, na base do “pega mas não pega”. O patrão lembrou-se durante a peleja, dos ensinamentos de seu bisavô, um português que há muito falecera, mas que quando moço ainda havia ouvido os sermões dos capuchinhos, e certa vez recomendou ao bisneto, que diante do perigo, lembrasse das velhas preces sertanejas.

Entoando os benditos, correu para o curral, e uma vez dentro do cercado, deu fé da incapacidade do vaqueiro de adentrar ao seu antigo local de trabalho. O gado ficou inquieto com a criatura que margeava o local, e o fazendeiro, vendo-se incapaz de ir ao encontro ao animal que até ali o trouxera, viu como única saída tentar montar uma das vacas mais próximas, tarefa que com dificuldade conseguiu cumprir, e impelindo o animal, desembestou curral a fora, cruzando o terreiro e escapando pela porteira, mas tendo sempre em seu encalço o “vaqueiro com olhos de besta fera”.

Escapou o patrão, mas as lembranças o levaram a loucura, e a fazenda abandonou, deixando a cargo de seus empregados retirar o que de valor ali houvesse. Várias tentativas foram feitas até o esvaziamento total do lugar, e quem de lá voltava, trazia na bagagem histórias aterradoras, e durante muito tempo se noticiou a presença do vaqueiro, vagando em fúria pelos mourões, deixando na piçarra a marca de seu ódio. Contou-me Firmino que somente com a passagem Frei Damião, em suas santas missões, é que os assombros diminuíram, e só assim a região tornou-se novamente atraente.

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Acadêmico de História na Universidade Regional do Cariri (URCA), foi secretário geral do Instituto Cultural do Cariri (ICC) e conselheiro de cultura do Crato. Fundou o Cariri das Antigas em 2014, e desenvolve pesquisas na área de História Política e Social. Atuou como bolsista da FUNCAP no projeto "Biopoder, Saúde e Saber médico: O Hospital Manuel de Abreu e as práticas de cura e controle da tuberculose na Região do Cariri nos anos de 1970”, coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Egberto Melo. É diretor administrativo do Clube do Automóvel do Cariri - Siqueira Campos, sendo o historiador responsável pela edição do periódico do clube, fruto de suas pesquisas acerca da história do automóvel no Brasil, com recorte entre as décadas de 1890 e 1990. Tem como pesquisa de trabalho de conclusão de curso, a História e Desenvolvimento da Aviação no Cariri, com enfoque principal na atuação do Correio Aéreo Militar.