Os Marcelinos de frente a cadeia pública. Os cinco de frente seriam fuzilados na mesma manhã. Lua Branca, último Marcelino, estava sentado, ferido. Atrás deles, os soldados e, em pé, Sargento José Antonio da Acauã. - REGIONAL - - ACERVO DE VILMA MACIEL

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O FUZILAMENTO

Em 05 de janeiro de 1928, poucos dias antes do primeiro aniversário do Fogo das Guaribas, outro crime cometido pela força pública cearense, José Antônio do Nascimento, sargento da polícia militar do Ceará, organizou sua força volante e retirou da cadeia de Barbalha, a época situada no Palácio 03 de Outubro, o cangaceiro Lua Branca, o último dos irmãos Marcelinos, e mais cinco prisioneiros que tinha relação com bando, com a justificativa que levaria os presos até o Crato, onde seriam transferidos para Fortaleza e julgados.

Seguindo pela antiga estrada da feira, uma via rural muito utilizada no período para ligar Barbalha ao Crato, o sargento ordenou a parada da tropa, e em seguida mandou os prisioneiros começarem a cavar suas próprias sepulturas, na localidade conhecida como Alto do Leitão. Manoel Toalha, um dos jurados de morte, tentou fugir e caiu sem vida, com o corpo varado pelas balas dos fuzis da volante.

Morreram naquela manhã cinco pessoas, foram elas: João Gomes, Joaquim Gomes, Pedro Miranda, Manoel Toalha e Lua Branca. Sobre o crime, panos quentes foram colocados, o extermínio dos presos não se deu em virtude da proteção da população caririense, e sim da proteção de parte dos coronéis da região, que tinham em suas fazendas, verdadeiros pontos de apoio para bandos de cangaceiros como os Marcelinos, aqui abordados, mas também serviam de base para outros afamados criminosos. O encaminhamento desses presos até Fortaleza, iria culminar no assédio da imprensa, e na coleta de testemunhos que poderiam incriminar figuras importantes do cenário econômico e político da região, em resumo, se tratava de uma queima de arquivo, feita pelo braço armado do estado do Ceará, a serviço de interesses privados.

O balanço final da operação conduzida pelo Sargento Nascimento, designado ao Cariri justamente para tratar desse caso, foi de tamanho vexame, que escandalizou a Demócrito Rocha, um dos maiores jornalistas da história do estado do Ceará, profundo conhecedor das estruturas políticas do Cariri. Há ainda o fato de que, após levantamentos posteriores, foi descoberto que a maioria dos assassinados não eram cangaceiros, e sim vaqueiros, agricultores ou profissionais liberais, que em algum momento tiveram seus caminhos cruzados pelos Marcelinos, e por isso foram arrolados na lista de culpados. Cabe lembrar, que ser coiteiro ou mensageiro de um grupo de cangaceiros, nem sempre era uma atitude voluntária, são inumeráveis os casos de cidadãos comuns que foram forçados a prestar serviços dessa natureza.

Um dos exemplos mais latentes é o de Manoel Toalha, cidadão comum, que possuía esse apelido em virtude de vender pães, e utilizar uma toalha na cabeça, para alivia a incidência do sol sobre seu corpo, e o peso do balaio. Sazonalmente, Manoel era recrutado para entregar bilhetes para os cangaceiros, foi o suficiente para a força militar enviada de Fortaleza, e para que fique registrado, deixo abaixo o nome de todos que compunham a volante comandada pelo Sargento Nascimento:

José Antônio do Nascimento – 2º Sargento e comandante da volante.

Joaquim Duarte Grangeiro – Cabo de esquadra.

Marçal Loureiro Ribeiro – Anspeçada

SOLDADOS:

Epitácio Furtado de Figueiredo

Francisco Furtado Landim

José Francisco Alves

José Rufino

José Manoel do Nascimento

Manoel Antônio dos Santos

José Rodrigues de Oliveira

Alfredo José de Castro

Manoel José Pereira

RASTEJADORES

Manoel Joaquim do Nascimento

João Pereira de Souza

José Telles da Rocha

QUEM FORAM OS MARCELINOS?

Os Marcelinos foram um bando de cangaceiros, formado inicialmente pelos irmãos Manoel Marcelino (Bom de Veras), João Marcelino (João 22) e Raimundo Marcelino (Lua Branca), e que teve forte atuação no Cariri Cearense entre 1924 e 1928. Procedentes do Pernambuco, do Sitio dos Moreiras, atual Moreilândia, os irmãos dedicaram boa parte da vida as atividades campestres, trabalhando em fazendas, principalmente como vaqueiros e agricultores.

Em meados de 1923, durante a feira de Caririzinho, distrito de Moreilândia, João Marcelino foi abordado por Ioiô Peixoto, chefe de polícia do lugar, que acompanhado de seus auxiliares, tomou a faca do Marcelino. Sentindo-se desmoralizado pela atitude de Peixoto, João jurou vingança. Após o fato ter sido comunicado aos outros irmãos, os Marcelinos decidiram surrar o chefe de polícia, o que culminou na contratação de um pistoleiro bastante afamado na região, por parte de Ioiô Peixoto, para que ele liquidasse os irmãos.

Cientes dos perigos, os Marcelinos venderam parte de seus bens e pediram baixa em suas funções nas fazendas em que trabalhavam. Adquiriram rifles Winchester e muita munição, e numa noite de lua clara, fuzilaram o chefe de polícia. A partir daquele momento, saíram da vida honesta de outrora, e ingressaram no mundo do crime.

O alvo principal dos Marcelinos eram os representantes comerciais e os comboieiros que voltavam das feiras com os bolsos recheados. Eram também responsáveis por extorquir fazendeiros e donos de engenho da região, dois de seus casos ficaram bastante famosos, um deles foi o assalto ao representante da Standard Oil, na época a maior petroleira do mundo, e a tentativa de assalto ao Chalé do Cel. Xavier, na Rua da Matriz, em Barbalha, não tendo eles obtido êxito nesse último ataque.

Foram eles também importantes aliados de Lampião em algumas ações especificas. Este artigo não tem por finalidade exaltar a memória de bandidos, mas sim, ser parte atuante na tarefa de contextualizar a sociedade do período. Cabras, cangaceiros e coronéis eram engrenagens de um mesmo sistema, e viviam em constante cooperação, a diferença é que no caso destes últimos, o nome, o poder financeiro, e o viés historiográfico de outrora, conseguiram remover as manchas biográficas, e até mais, os lançaram como homenageados em praças, ruas, avenidas e monumentos, e viabilizou também a antipatia ao estudo sobre os que compunham o restante dessa moenda tão feroz. Aos poucos, a partir da morte de Bom Deveras, os Marcelinos foram se acabando, sendo o fuzilamento de Lua Branca o último ato desta infame peça.

As arbitrariedades das forças públicas de segurança ainda estampam as manchetes dos periódicos atualmente. Há 90 anos, o quadro era bem diferente, e no sentido negativo. Registros históricos mostram situações de abuso de autoridade, tortura, homicídio qualificado, mutilação de cadáveres, e principalmente, impunidade. No Cariri Cearense, o uso das forças de segurança e do poder judiciário a serviço dos interesses particulares de coronéis e seus apaniguados são recorrentes, ao analisar esse quadro, é possível compreender a antipatia alimentada pela população mais pobre em relação as volantes e batalhões daquele período, uma vez que era evidente que, apesar de serem pagos com os impostos de todos, os juízes, capitães e seus comandados serviam de fato a muito poucos, restando ao trabalhador, casos de humilhações em feiras livres, perda de terras nos tribunais, defloramento de filhas, assassinato dos seus, em julgamentos autocráticos, onde o juiz era o projétil de uma rifle, disparado por um servidor público, no meio da mata, em alguma vala, ou até mesmo diante de uma multidão.

Imperavam os concílios políticos, as votações de cabresto, e a voz de mando do chefete político do lugar, e de seus aliados. Os fuzilados do Alto do Leitão, o Fogo das Guaribas, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, e muitos outros casos, são exemplos claros da força do poder privado sobre a coisa pública. Muitos tentam forçar uma comparação equivocada e anacrônica entre situações contemporâneas e as que ocorreram no contexto supracitado. Impossível também, é negar as permanências históricas nas estruturas de repressão do estado nos dias de hoje, mas esse é um trabalho que requer argumento e contextualização específicos, e que não cabem num artigo tão resumido como esse.

Por fim, concluo dizendo ao leitor, que o caso dos Fuzilados do Leitão deve estar sempre em evidência, assim como a memória dos miseráveis sepultados naquelas paragens, pois são fatos como esse, que nos ajudam a entender as estruturas políticas do Brasil na República Velha e no Império, sendo fontes importantes para compreender o mandonismo, o coronelismo, e o cangaço, e principalmente, para entender o Brasil de hoje.

REFERÊNCIAS

O BANDO DOS MARCELINOS E O CEMITÉRIO DO ALTO DO LEITÃO
COMO PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL, NO CARIRI CEARENSE – ANA PAULA RODRIGUES DA COSTA, PATRÍCIA AMORIM SOUSA E JOSIER FERREIRA DA SILVA

O Ceará – Ed. 07 de janeiro de 1928 – Pgs. 4 e 5 (Hemeroteca da Biblioteca Nacional)

 

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Roberto Junior
Acadêmico de História na Universidade Regional do Cariri (URCA), foi secretário geral do Instituto Cultural do Cariri (ICC) e conselheiro de cultura do Crato. Fundou o Cariri das Antigas em 2014, e desenvolve pesquisas na área de História Política e Social. Atuou como bolsista da FUNCAP no projeto "Biopoder, Saúde e Saber médico: O Hospital Manuel de Abreu e as práticas de cura e controle da tuberculose na Região do Cariri nos anos de 1970”, coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Egberto Melo. É diretor administrativo do Clube do Automóvel do Cariri - Siqueira Campos, sendo o historiador responsável pela edição do periódico do clube, fruto de suas pesquisas acerca da história do automóvel no Brasil, com recorte entre as décadas de 1890 e 1990. Tem como pesquisa de trabalho de conclusão de curso, a História e Desenvolvimento da Aviação no Cariri, com enfoque principal na atuação do Correio Aéreo Militar.