O casarão do Padre Lacerda. Importante destacar a entrada de automóvel, um luxo para muito poucos no período, tendo em vista o contexto de aquisição de um carro no período.

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Em 19 de janeiro de 1922, a rotina pacata do distrito de Coité foi quebrada pela marcha de 70 homens fortemente armados, chefiados por ninguém menos que Sinhô Pereira, o terror dos sertões. No Sítio Brejinho, João Pereira dos Oitís e seus dois filhos, Manoel e Nascimento, desfrutavam do almoço, por volta das dez horas da manhã. Manoel, desejoso de ampliar o cardápio, escalou no pé de manga que os servia como sombra, em busca das últimas frutas da estação.

Pouco tempo depois, Manoel desceu agoniado e informou ao pai ter avistado uma tropa de cangaceiros em plena marcha. Rapidamente a notícia correu pelo povoado do Coité, e em desabalada carreira, boa parte da população deixou suas casas, e até mesmo os moradores dos sítios adjacentes preferiram se retirar, vislumbrando o banho de sangue que deveria acontecer em breve.

O Padre Lacerda, como já explanei em seu artigo biográfico que pode ser lido clicando aqui, era um sujeito vontadoso, e um advogado audacioso, e ciente dos caminhos que havia trilhado, sempre tinha por perto homens de sua confiança, geralmente parentes seus, dispostos a fazer sua proteção em qualquer circunstância.

A GESTAÇÃO

A chegada do bando de Sinhô Pereira, que tinha entre seus membros o já afamado Virgulino Ferreira, vulgo “Lampião”, não era inesperada pelo padre. Ponto de atração do povoado, proveniente de uma extensa e forte família, o Padre Lacerda tinha uma rede de contatos extensa o suficiente para saber que havia um consórcio sendo elaborado entre o Major Zé Inácio do Barro, e Sinhô Pereira, e cada um tinha seus motivos específicos para se indispor com o sacerdote.

Sinhô Pereira, no ano anterior, durante uma visita a casa de Antonio Miguel Pereira, seu tio e proprietário da Fazenda Brejo Grande, marchou com seu bando pelo povoado do Coité, em busca da fazenda do Major Zé Inácio. Apesar de não ter praticado qualquer crime no lugarejo, Sinhô foi delatado pelo Padre Lacerda, que incontinente cavalgou até Milagres e informou ao delegado da cidade a presença do famigerado cangaceiro. A consequência do episódio foi o envio de uma força volante até o Coité, o que provocou a ira de Pereira, que apesar de não ter sido alcançado pelos policiais, inscreveu o sacerdote em sua lista de desafetos.

Ciente do desejo de vingança de Sinhô Pereira, o Major Zé Inácio, braço forte do cangaceiro no Cariri, o conclamou a tramar e executar um ataque ao Padre Lacerda. A fama da riqueza do sacerdote era outro grande atrativo aos criminosos, o que tornou ainda mais viável o acordo. José Inácio, apesar de ter um influente aliado, o Dr. Floro Bartholomeu da Costa, dono dos destinos políticos de Joaseiro do Padre Cícero, andava há tempos na mira do governo do estado.

Em 20 de janeiro de 1919, um bando comandando por Tiburtino Inácio de Souza, vulgo “Gavião”, homem de armas e filho de José Inácio, assaltou a casa grande do Sítio Nazaré, lar de D. Praxedes Furtado de Lacerda, viúva do Cel. Domingos Furtado Leite, chefe absoluto de Milagres, e um dos mais poderosos coronéis de seu tempo, falecido em 1918, vítima da epidemia de Gripe Espanhola. Sobre o roubo a viúva, trataremos em maiores detalhes em um próximo artigo.

Decorridos dois anos, o Padre Lacerda, membro da família de D. Praxedes, defendeu com sucesso nos tribunais, Pedro Sampaio de Lacerda, cujo processo afetou diretamente o prestígio político do Major Zé Inácio. Foram os fatores supracitados, os principais responsáveis pela ira do chefe de Barro, e tornaram ainda mais fácil o seu engajamento no ataque ao sacerdote.

O FOGO

Espalhados em pontos estratégicos, com o grosso da tropa na parte de baixo do quadro da igreja, mais precisamente na casa de Manoel Faustino de Lacerda, que havia sido tomada pelos criminosos, o bando de Sinhô Pereira iniciou fortíssimo ataque contra a casa do Padre Lacerda. O imóvel, bem construído e resguardado em suas fachadas, era um grande entrave aos atacantes, se configurando como uma verdadeira fortaleza. Eram onze horas da manhã de 19 de janeiro de 1922.

Especula-se muito sobre o número de defensores do Padre Lacerda, alguns textos descrevem que ele tinha também seu pequeno exército, entretanto, a maioria das fontes indicam que sua guarda era muito pequena, restrita a apenas Manoel “Pêia Gato” e alguns poucos parentes seus. José Sampaio de Lacerda esmiuçou a vida do sacerdote, e analisou exaustivamente todas as versões sobre o acontecido, tendo ainda tido contato com testemunhas oculares e participantes da peleja, e afirma em sua obra que o número de defensores não ultrapassava 13 pessoas.

A grande maioria estava dentro do casarão do Padre Lacerda, e eram moradores que tinham ficado para auxiliar na resistência. No momento do combate, somente dois militares estavam na vila: José Paulino, soldado da Força Pública do Ceará, e o Cabo Henrique, esse já em idade mais distante da mocidade. Ambos iniciaram seus ataques por trás da igreja, tendo conseguido posteriormente acessar o casarão, e ali, junto a Antônio Miguel de Lacerda e seus dois irmãos, João Miguel e Pedro, acompanhados de Manuel Sampaio de Lacerda (Neco Lacerda), Teófilo Nascimento, Manuel “Pêia Gato”, José Miguel e o próprio sacerdote, deram combate aos cabras de Sinhô Pereira.

Soldado Paulino e Cabo Henrique subiram até o sótão do casarão, onde com uma alavanca cavaram torneiras na parede que estava na direção dos cangaceiros. As torneiras são aberturas circulares nas paredes, que serviam para que o atirador inserisse o rifle e atirasse com mais segurança. A partir desse momento, a defesa passou a oferecer relevante perigo aos atacantes, tendo em vista as muitas direções que suas balas partiam.

O grande objetivo era não deixar os cangaceiros adentrarem o imóvel, pois isso significaria o extermínio dos defensores. Todas as entradas estavam guarnecidas, e bravamente os aliados do Padre Lacerda sustentaram o fogo por seis horas, auxiliados por Manuel Janoca, Joaquim Siqueira e Antonio Peba, que estavam em outra extrema do povoado. Enquanto isso, na casa vizinha a do padre, Vicente Ramos, fiscal do governo estadual, esperneava aos prantos por socorro, depois de ter largado as armas e desistido de lutar, forçando a abertura de um buraco na parede do casarão do religioso, para que ele adentrasse o imóvel. Pudera, o barulho da troca de tiros era ensurdecedor, e em alguns momentos, até o próprio Padre Lacerda titubeou, tendo sido necessária a intervenção de um dos combatentes para o acalmar.

O Padre Lacerda na década de 1930.

Ao cair da tarde, Sinhô Pereira decidiu bater em retirada. A atitude do cangaceiro foi de grande prudência, uma vez que a noite o contexto poderia facilmente mudar, tendo em vista que os defensores conheciam bem o povoado e adjacências, o que lhes dava vantagem. Outro fator importante para a debandada foi a chegada de uma volante comandada por Pedro Augusto de Lacerda, subdelegado de Mauriti e sobrinho do Padre Lacerda, que ao ter conhecimento do combate, seguiu para o Coité com um pequeno contingente de cerca de dez soldados, reforçando de modo determinante a defesa do lugarejo.

Em marcha firme os cangaceiros seguiram para fora do povoado, e encontraram descanso na Fazenda Araticum, de propriedade de André Cartaxo, que assim como muitos das redondezas, havia deixado seu imóvel receoso das consequências do Fogo do Coité (os moradores do povoado, em sua maioria, foram buscar refúgio na casa do Padre Maranhão). Uma prova de que a questão de Sinhô Pereira era exclusivamente com o Padre Lacerda, é que não houve ataques as propriedades vizinhas, e a Araticum, apesar de ter sido ocupada, não demandou combate, uma vez que já estava vazia.

Após uma noite turbulenta, com receio de um ataque inesperado, o Padre Lacerda e seus defensores celebraram a santa missa na capela de Nossa Senhora da Conceição, fazendo honras a São Sebastião, santo do dia, o qual a imagem usada na celebração permanece no altar da capela supracitada até os dias de hoje.

Passados três dias na fazenda dos Cartaxo, o grupo levantou acampamento para seguir viagem. No local chamado Apanha Peixe, nas redondezas de Mauriti, estacionaram na Fazenda Queimadas, que pertencia ao Cel. Antônio Martins de Morais. O Sargento Antônio Gouveia, tomando ciência da presença do bando tão próximo, conseguiu a muito custo juntar quinze praças e seguiu bravamente para o combate.

Na ocasião, os cangaceiros em maior número começaram a ganhar terreno. Estrategista, o Sargento Gouveia enviou um emissário em busca de reforços, no que foi atendido pelo Sargento Jonas, que com rapidez integrou as forças legalistas e forçou o recuo do bando. Todavia, os militares estavam cientes do contexto desfavorável a eles, que já acumulavam duas baixas e um homem ferido, e bateram em retirada.

Sinhô Pereira não aguardou o retorno de uma volante mais forte. Juntou seus homens e ganhou o mundo, tendo como perca valiosa, o temido cabra “Pitombeira”, e posteriormente “Lavandeira”, que saiu carregado em uma rede, e faleceu já na Serra da Canabrava.

Assim terminou a epopeia de um padre intrigante, que peitou alguns dos mais poderosos coronéis do Cariri, e conseguiu ter êxito contra dois expoentes do cangaço: Sinhô Pereira e Lampião. Como boa parte das histórias do Padre Lacerda, essa também ficou envolta em misticismo, dizendo alguns que os cangaceiros se assombraram, acreditando ter forte artilharia nas torres da igreja.

O Fogo do Coité inseriu o Padre Lacerda na crônica histórica do Cariri de forma decisiva, e foi também responsável por deixar em verdadeira saia justa o Major José Inácio do Barro e o Dr. Floro Bartholomeu, que inclusive teve de fazer declarações na câmara dos deputados acerca do tema. José Inácio, que possuía ferrugem em seus cabos de sustentação política, findou tendo de fugir do Ceará, tendo encontrado a morte no ano seguinte.

O CASARÃO NOS DIAS DE HOJE

Detalhes originais da sobreporta – FOTO: Bruno Yacub
O imóvel em 2020 – FOTO: Bruno Yacub

REFERÊNCIAS

História da família do Coité e outros assuntos – José Sampaio de Lacerda; Pgs. 51-80.

Lampião e o estado maior do Cangaço – Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena; Pgs.119 – 123.

Acadêmico de História na Universidade Regional do Cariri (URCA), foi secretário geral do Instituto Cultural do Cariri (ICC) e conselheiro de cultura do Crato. Fundou o Cariri das Antigas em 2014, e desenvolve pesquisas na área de História Política e Social. Atuou como bolsista da FUNCAP no projeto "Biopoder, Saúde e Saber médico: O Hospital Manuel de Abreu e as práticas de cura e controle da tuberculose na Região do Cariri nos anos de 1970”, coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Egberto Melo. É diretor administrativo do Clube do Automóvel do Cariri - Siqueira Campos, sendo o historiador responsável pela edição do periódico do clube, fruto de suas pesquisas acerca da história do automóvel no Brasil, com recorte entre as décadas de 1890 e 1990. Tem como pesquisa de trabalho de conclusão de curso, a História e Desenvolvimento da Aviação no Cariri, com enfoque principal na atuação do Correio Aéreo Militar.